16 de janeiro de 2023

A Genética Vai Mudar o Futuro

Matéria para Viva Saúde, por Cristina Thomaz.

 

É possível viver mais e melhor com a ajuda da genética? O médico Salmo Raskin, pediatra e doutor em Genética – o estudo dos genes, sua variação e a forma como as características biológicas são transmitidas de geração em geração –, é categórico: “Basta olhar para os países mais desenvolvidos do que o nosso, onde a genética é uma realidade há décadas. Essas pessoas usufruem dos avanços da genética e certamente vivem mais e com melhor qualidade.” A grande colaboração desse campo de estudos se dá, especialmente, na elucidação da causa de diversas doenças raras, que acometem 6% da população mundial. No Brasil, com o teste do pezinho e de paternidade, trouxe ainda justiça social. Mas por aqui ainda há muito esforço pela frente para que a assistência médica em genética seja acessível a todos. “O Brasil está muito abaixo de outros países, inclusive de nações da América Latina. Há necessidade de uma grande reformulação nesse sentido”, diz Raskin. Acompanhe a entrevista que ele concedeu à VivaSaúde.

Dr. Salmo, é verdade que o fato de o senhor ter lábio leporino o motivou para o estudo da genética? Sim, teve influência, inclusive na minha decisão de fazer as especializações em Pediatria e Genética. Mesmo antes de entrar na faculdade aos 16 anos, eu já me perguntava o porquê dessa e de outras condições acontecerem com algumas pessoas e outras não. Mas esse não foi o único fator que me influenciou. Meu pai era médico e minha mãe, farmacêutica. Questões de saúde sempre rondaram o meu dia a dia, até porque o consultório do meu pai era junto à casa em que morávamos. Eu acompanhava, querendo ou não, o mundo das pessoas com doenças.

Qual é a importância do estudo da genética? Por meio desse estudo podemos compreender melhor nosso passado, presente e futuro. Tanto as investigações de hereditariedade como da ancestralidade podem nos ensinar muito de onde viemos e fatos que ocorreram na nossa família. As consultas em genética nos dizem sobre como estamos atualmente e se corremos riscos elevados de vir a ter problemas no futuro. Então, podemos dizer que é uma medicina preventiva familiar.

O senhor participou do Projeto Genoma Humano. Quais eram os objetivos iniciais? Por destino, fui fazer meu treinamento em Genética nos EUA em 1990, justamente quando o Projeto Genoma Humano começou. Então, tive a oportunidade de acompanhar os avanços, literalmente, desde o primeiro dia. Os objetivos iniciais eram identificar quantos genes nós temos, quais as proteínas produzidas por eles e, o mais ambicioso, determinar a sequência completa do nosso “alfabeto” genético. Felizmente todos eles foram atingidos, resultado de uma gigantesca colaboração científica internacional que durou dez anos, custou U$ 3 bilhões e envolveu centenas de pesquisadores. Eu me orgulho muito de ter feito parte disso.

Na prática, o que já é realidade em genética por causa do Projeto? O resultado de maior impacto foi a elucidação da causa de dezenas de milhares de doenças genéticas raras. Elas são doenças numerosas, pouco frequentes e cujo componente genético é bastante determinante. Nos últimos cinco anos, o foco tem sido o entendimento do componente genético de doenças menos numerosas porém mais frequentes, como o diabetes, a osteoporose, as demências, a hipertensão arterial, os acidentes vasculares, o infarto, o câncer e as doenças psiquiátricas.

Explica para nós o que são doenças consideradas raras. As doenças raras acometem 6% da população mundial. Com base nesse índice, existe uma estimativa, não muito adequada, que diz que elas afetam 13 milhões de brasileiros. Essas doenças podem ser hereditárias, ou seja, transmitidas de pais para filhos, como a fibrose cística, a anemia falciforme, a atrofia muscular espinhal e a hemofilia. Podem ainda ser genéticas, como a acondroplasia (nanismo) e a Síndrome de Down – que na maioria das vezes não são herdadas.

E como elas surgem? Temos 20 mil genes no núcleo de cada célula. Os genes são responsáveis por produzir proteínas. As proteínas têm várias funções no nosso organismo e podem atuar como enzimas, hormônios ou transportadoras de substâncias, entre outras funções. Quando um gene desses está alterado, seja por herança ou fatalidade, as proteínas não são produzidas em quantidade ou qualidade suficientes. É assim que surgem as doenças genéticas. Existem, já identificadas, cerca de 7 mil delas.

Por que as doenças raras e genéticas desafiam a ciência? O principal desafio é que a raridade é irmã da falta de conhecimento. E o que é raro não tem tanta importância em um mundo capitalista em comparação com aquilo que atinge muita gente. Vivemos em um mundo globalizado no qual as minorias sofrem, não só quem tem uma doença rara. Além disso, desvendar a genética humana é muito mais complexo do que saber quantos genes temos e qual a sequência de três bilhões de letras bioquímicas do nosso genoma. Vamos levar décadas para compreender tudo.

Diagnosticar e tratar doenças raras é um gargalo da saúde pública brasileira? Sim, é uma falha histórica do nosso sistema de saúde. A verdade é que o Brasil tem grande dificuldade de ofertar uma saúde de qualidade mesmo para os problemas mais frequentes da saúde de sua população. Quanto mais desenvolvido é um país, mais as doenças raras se tornam uma questão de saúde pública. Infelizmente, ainda há um fosso enorme no acesso a esses diagnósticos quando comparamos as pessoas que têm recursos financeiros ou mesmo um plano de saúde e os 75% dos brasileiros que dependem exclusivamente do SUS. Não sei se existe outra área de especialidade na Saúde com tamanha desigualdade
sobre esse aspecto.

Como é a realidade da genética aqui no Brasil atualmente? É importante diferenciar o que é pesquisa científica em genética e assistência de saúde em genética. Na pesquisa, o Brasil sempre teve lugar relevante no contexto internacional, por mais dificuldades de investimento em pesquisa que existam. Mas, na assistência de saúde em genética, em termos comparativos, o Brasil está muito abaixo de outros países, inclusive da América Latina. Há necessidade de uma grande reformulação nesse sentido.

O que ainda falta para que possamos usar a genética para evitar doenças? Falta muito. Com poucas medidas simples, efetivas e de baixo custo, poderia ocorrer uma verdadeira revolução na prevenção de doenças genéticas no Brasil. Dentro da prevenção primária, poderíamos incluir propostas de melhoria na educação não só da população em geral, mas também dos profissionais de saúde. É essencial criar campanhas de divulgação sobre os benefícios do aconselhamento genético, com apoio das sociedades médicas e de outras áreas de Saúde; ampliar a inserção de conteúdos sobre genética médica e doenças raras em todos os cursos de graduação da área de Saúde; fazer parcerias com as escolas técnicas do SUS e ofertar cursos de genética comunitária com foco em doenças raras para agentes comunitários de saúde. Enfim, a lista do que fazer é grande.

O senhor citou o aconselhamento genético. Está disponível no SUS, certo? O aconselhamento genético existe há décadas e está, sim, disponível no SUS. Não de forma homogênea, mas para muitos já é uma realidade. Trata-se de um processo de comunicação que lida com problemas humanos associados com a ocorrência ou risco de ocorrência de uma doença genética em uma família. Conta com a participação de uma ou mais pessoas treinadas para ajudar o indivíduo ou sua família a compreender os fatos médicos, para que possam escolher o curso de ação que pareça apropriado em virtude do seu risco.

Teste do pezinho, de paternidade e até testes de ancestralidade se popularizaram… Isso significa que o interesse nesse tipo de medicina aumentou? Os testes do pezinho e de paternidade foram grandes avanços, pois trouxeram justiça
social. Já os testes de ancestralidade por DNA podem trazer grande sensação de pertencimento, ao entender que é nossa mistura de etnias que faz nossa força como nação. Entender que todos somos, em certo grau, afrodescendentes, pois o ser humano se originou na África. É a genética sendo usada para melhorar o ser humano, não para dividir.

 

 

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