CÂNCER HEREDITÁRIO: Testes podem constatar risco aumentado, indicando cuidados
12 de agosto de 2024

Perguntas e respostas: saiba tudo sobre hiperandrogenismo, condição da boxeadora argelina Imane Khelif

Atleta enfrentará a chinesa Liu Yang, nesta sexta-feira, na final do boxe em busca de uma medalha de ouro nas Olimpíadas de Paris

Por O GLOBO – 09/08/2024

 

A boxeadora argelina Imane Khelif virou alvo de polêmica após sua vitória nas oitavas de final nas Olimpíadas de Paris-2024 contra a italiana Angela Carini, que desistiu aos 46 segundos da luta. Recentemente, a delegação da Argélia informou nas redes sociais que Khelif tem hiperandrogenismo, condição caracterizada por níveis excessivamente altos hormônios masculinos. Nesta sexta-feira, Imane luta em busca de uma medalha de ouro.

A pedido do GLOBO, o médico geneticista Salmo Raskin, diretor científico da Sociedade Brasileira de Genética Médica e Genômica e colunista do GLOBO, esclarece as principais dúvidas sobre o assunto.

 

É uma novidade o questionamento sobre o sexo de atletas em competições de elite?

Não, este tipo de polêmica já existe há décadas e acontece em quase todas as competições de atletas de elite. Nos Jogos Olímpicos de Verão de 1932, em Los Angeles, a atleta polonesa Stanisława Walasiewicz conquistou a medalha de ouro nos 100 metros femininos e a medalha de prata na mesma prova, quatro anos depois. Após sua morte, descobriu-se que ela tinha um dos tipos do que hoje designaríamos como Desordem de Diferenciação Sexual, visto que a maioria de suas células continha cromossomos XY. Já o precedente para verificação de gênero foi estabelecido em 1936, na Olimpíada de Berlim. As autoridades alemãs se sentiram compelidas a emitir uma declaração de que a velocista medalhista de ouro americana, Helen Stevens, passou por um “teste de sexo” depois que jornalistas poloneses questionaram sua feminilidade. Em 1957, Herman Ratjen confessou que foi forçado sob ordem nazista a se disfarçar de uma mulher chamada “Dora” em eventos de salto em altura. Ele conquistou o quarto lugar nas Olimpíadas de Berlim de 1936, e estabeleceu um novo recorde mundial em 1938.

 

Então porque o caso na boxeadora Argelina Imane Khelif ganhou tanta notoriedade?

Um dos motivos que atraíram tanta atenção foi porque o esporte dela é o boxe, aonde estas questões ficam ainda mais evidentes, visto que além de possível vantagem competitiva, a diferença pode causar dano físico às atletas. Em esportes coletivos ou naqueles que não há tanto contato físico, estas questões chamam menos atenção. Já na primeira luta de Khelif, a competidora italiana Angela Carini desistiu após 46 segundos de luta, dando a entender que não poderia lutar com alguém com possível vantagem competitiva. Khelif é uma de duas boxeadoras que não foram aprovadas em “teste de gênero” aplicado pela IBA (Associação Internacional de Boxe) em 2023. E em um mundo aonde bilhões de pessoas tem informação no mesmo segundo que os fatos acontecem, a polêmica se globalizou rapidamente.

 

A boxeadora Imane Khelif é transgênero?

Não, tudo indica que ela nasceu com a genitália externa feminina e por consequência foi educada como uma menina. Sempre foi e quis ser uma mulher, sempre competiu entre as mulheres. Não se trata de alguém que optou por mudar de gênero.

 

Ela pode ser considerada uma hermafrodita ou intersexo?

É importante esclarecer que por questões relacionadas à privacidade, os dados clínicos e laboratoriais dela não foram demonstrados oficialmente. Nunca vieram à tona laudos médicos ou de exames laboratoriais que ela tenha feito. Tudo está sendo baseado em declarações e especulações. O presidente russo da Associação Internacional de Boxe, Umar Kremlev, afirmou categoricamente que os resultados de testes mostraram que a atleta tem cromossomos X e Y, compatível com sexo genético masculino. Mas nunca demonstrou o laudo deste exame. Ao nascimento ela foi declarada como menina. Estas especulações sugerem que talvez Khelif seja uma mulher com cromossomo Y, então ela teria uma “desordem” ou “diferença do desenvolvimento sexual”. Esta é a designação atual para um grupo de condições que afeta cerca de uma a cada 4 mil pessoas. Não se usam mais termos como “hermafrodita” e “intersexo” pela sua imprecisão e pela estigmatização que geravam.

A delegação da Argélia disse que Khelif tem hiperandrogenismo. O que pode causar isso?

Hiperandrogenismo é o termo usado para descrever o aumento de hormônios como a testosterona. Isso pode ser causado por vários fatores que vão desde o uso de doping com testosterona até desordens do desenvolvimento sexual, das quais algumas ocorrem quando uma mulher tem um cromossomo Y. Nesse, caso, as duas causas principais, ambas de origem genética e hereditária, que interferem nesse hormônio são a síndrome de insensibilidade androgênica, que interfere na ação da testosterona, e a deficiência de produção da enzima 5-alfa-redutase, que interfere na transformação do hormônio em outro hormônio.

 

Uma mulher com essas condições sempre teria vantagem competitiva?

A síndrome de insensibilidade androgênica é causada por uma alteração em um gene localizado no cromossomo X, que normalmente produz uma proteína que é um receptor responsável pela entrada do hormônio testosterona nas células. Se a pessoa tem uma mutação neste gene e não tem um segundo cromossomo X, a testosterona é produzida em altas doses, porém, não entra dentro das células. Como consequência, esta pessoa tem elevados níveis de testosterona no sangue, mas o hormônio não tem influência no desenvolvimento dos músculos. Muitos entendem que, sendo assim, pessoas com esta rara condição, que afeta cerca de 1 em cada 20 mil pessoas, não teriam vantagem competitiva. Com este exemplo já podemos ver que uma mulher com cromossomo Y, nem sempre terá uma vantagem competitiva. E isto é importante para chamar a atenção que fazer apenas um teste genético para demonstrar se uma mulher tem um cromossomo Y pode levar a injustiças.

A segunda condição é a deficiência de produção da enzima 5-alfa-redutase. Trata-se de uma condição genética e hereditária ainda mais rara, a ponto de que sua incidência nem é conhecida. Nesta condição a alteração genética impede a produção de uma enzima que normalmente transforma a testosterona em um produto mais potente, a di-hidrotestosterona, que tem entre suas funções auxiliar no desenvolvimento dos órgãos sexuais masculinos externos, como o pênis e a bolsa escrotal. Sem esta enzima, a di-hidrotestosterona não é produzida, impactando principalmente nas características da genitália externa, que pode se apresentar de forma variada, inclusive como uma genitália feminina. Nesta condição, diferente da síndrome de insensibilidade androgênica, a testosterona não só se acumula, como age nos tecidos, levando a um aumento de massa muscular e outros aspectos evidentes de masculinização, como, a presença de pelos pubianos e axilares. Não é comum que estas pessoas tenham pelos na face ou que tenham desenvolvimento dos seios.

 

Existem atletas olímpicas que já foram oficialmente diagnosticadas com essas condições?

A atleta espanhola de corrida com barreiras, Maria José Martínez-Patiño foi diagnosticada com síndrome de insensibilidade androgênica e a exposição e estigmatização que sofreu são usados como exemplo de que muita cautela é necessária na avaliação destes casos, que são complexos em todos os sentidos. Ela foi afastada da seleção olímpica espanhola em 1985 e banida do atletismo feminino após se classificar para os Jogos Olímpicos de Verão de 1988, antes de ser autorizada a competir novamente no final daquele ano. Pessoas com essa síndrome podem nem apresentar masculinização, de modo que podem descobrir a condição só na puberdade, quando não ocorre a menstruação, porque elas não têm útero ou tem um útero atrófico. Já deficiência de produção da enzima 5-alfa-redutase é o caso da famosa atleta sul-africana Castel Semenya, que tem duas medalhas de ouro olímpicas (a última no Rio em 2016) e três campeonatos mundiais nos 800 metros femininos. Em 2019 foi impedida de competir e seu caso está sendo julgado pela Corte Europeia de Direitos Humanos.

 

Existe um teste laboratorial ideal que poderia ser aplicado nas atletas, resolvendo esta polêmica?

Não, não há um único teste que seja esclarecedor de uma questão tão complexa e este é um dos grandes obstáculos. No contexto do esporte, testes que detectam a presença do cromossomo Y em mulheres já foram utilizados e se mostraram imprecisos, com resultados falsos positivos. Em condições como a síndrome de insensibilidade androgênica, este tipo de teste demonstra a presença de cromossomo Y, mas muito provavelmente sem vantagem competitiva. Além disto, no contexto do esporte, estes testes foram usados sem cautela quanto à privacidade das atletas, trazendo prejuízos irreparáveis. Alguns argumentam que a dosagem dos níveis de testosterona seria o teste ideal, visto que a concentração deste hormônio difere bastante entre homens e mulheres e que hormônios afetam o desempenho atlético individual mais do que genes ou a anatomia genital. Neste sentido, já ocorreram várias tentativas de estabelecer um limite para a dosagem, mas nunca houve consenso entre as entidades reguladoras. Além disso, há quem argumente que uma atleta que tenha passado pela puberdade masculina teria vantagem competitiva independente se os níveis de testosterona estão controlados e não ultrapassam as concentrações máximas encontradas em mulheres. E há também quem argumente que ainda faltam evidências científicas que a testosterona confira uma vantagem competitiva tão importante que não possa ser ultrapassada por outros atributos. Por último, os testes genéticos moleculares mais modernos (de DNA) são úteis para identificar alterações nos genes da síndrome de insensibilidade androgênica, deficiência de 5-alfa-redutase e outras condições, e, portanto, poderiam e deveriam ser utilizados, mas só no final da cadeia investigatória, até porque existem inúmeras outras desordens de desenvolvimento sexual, e porque estes dois testes genéticos não são sensíveis para detectar alterações nestes dois genes.

 

As desordens de diferenciação sexual são mais prevalentes entre os atletas Olímpicos do que na população em geral?

Sim. A prevalência de desordens de diferenciação sexual do tipo “mulheres XY” foi estimada em 27 em 11.373 ou 1 em 421 durante os cinco Jogos Olímpicos anteriores a Sydney em 2000, em comparação com uma incidência estimada de 1 em 20 mil, na população geral. Estes dados sugerem uma vantagem competitiva para atletas olímpicas que tenham algumas destas desordens. Porém temos que lembrar que se trata de condições raras, e o impacto no esporte é ainda mais raro. Ainda não há estudos científicos que comprovem de maneira irrefutável se e em quais circunstâncias existem estas vantagens competitivas, e a proporção destas possíveis vantagens. É uma área ainda em investigação.

 

Esta polêmica pode ser resolvida para a próxima Olimpíada?

Certamente o que ocorreu nesta Olimpíada terá impacto na próxima, mas a questão está longe de ser resolvida porque é complexa e envolve não apenas questões médicas, mas também legais e sociais. O Comitê Olímpico Internacional, com a boa intenção de prover acesso a todos, deixou a cargo das instituições locais este tipo de decisão. O impacto da polêmica na Olimpíada de Paris obrigará o COI a rever suas decisões e critérios. Dezenove mulheres competiram pela primeira vez nos Jogos Olímpicos de 1900 em Paris. Cinquenta e sete mulheres competiram em Estocolmo em 1912 e, em 1960, 610 competiram nas Olimpíadas de Roma. Em 2024, na Olimpíada de Paris, 5.250 mulheres estão competindo. A desejada e festejada inclusão das mulheres nos esportes e a dificuldade de estabelecer parâmetros satisfatórios de quem pode competir de modo justo entre elas tende a se acirrar nos próximos anos. O desafio será encontrar um fiel equilíbrio na balança, aonde de um lado está o direito de todos competirem e do outro, o direito de mulheres competirem apenas entre elas. Enquanto a ciência não tem todas as respostas e o equilíbrio não foi alcançado, é fundamental que as pessoas com desordens de diferenciação sexual, incluindo as atletas de elite, tenham sua dignidade e privacidade protegidas, pois são o elo mais frágil desta corrente. Não fizeram nada de errado, não usaram doping nem outras formas ilícitas de competir, e seguiram as regras que lhes foram imputadas. Portanto, não faz sentido serem alvo de bullying, preconceito, ignorância e estigmatização. Se realmente tiverem vantagens competitivas que outras atletas não podem ter com talento, esforço e perseverança, um espaço adequado e respeitoso tem que ser encontrado para que possam praticar e ser vitoriosas no esporte e na vida.

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