15 de setembro de 2022

Aconselhamento Genético: uma ferramenta fundamental em todos os casos de retinoblastoma

Muito importante o depoimento de pessoas públicas como o casal Thiago Leifert e Daiana Garbin, trazendo holofotes para o Retinoblastoma detectado recentemente na filha Lua. Em poucos dias muito já se ganhou com a difusão de informações corretas a respeito das características deste tipo de Câncer, da importância de detectá-lo o mais rápido possível e dos tratamentos disponíveis. Mas quase nada se informou a respeito do componente genético e hereditário do Retinoblastoma e suas implicações para quem desenvolve este tipo de câncer e para os pais e parentes em futuras gestações.

Retinoblastoma sempre ocorre devido a uma alteração na genética das células da retina. Pode ou não vir da genética de um dos pais,  e pode ou não passar para as próximas gerações. O que pode ser herdado e passado para outras gerações é uma alteração genética no gene RB1 situado no braço longo do cromossomo 13, variante esta que quando presente coloca a pessoa geralmente em alto risco de vir a desenvolver Retinoblastoma.

O Retinoblastoma é hereditário em cerca de 45% dos casos, sendo que destes 80% ocorrem nos dois olhos, são unilaterais em 15% em 5% são chamados trilaterais quando afetam tambem o sistema nervoso central, em especial a glandula pineal.

Quando existem outras pessoas no núcleo familiar com Retinoblastoma, quando afeta os dois olhos ou quando o teste genético detecta mutação no gene RB1, a definição de hereditariedade é clara. Porém só em 10% das pessoas com Retinoblastoma o pai ou a mãe tem Retinoblastoma. Em 90% das pessoas com Retinoblastoma não há histórico familiar nas gerações anteriores. Nestes casos apesar dos afetados poderem passar a mutação genética para próximas gerações, 95% dos afetados não herdaram a mutação genética nem de seu pai nem de sua mãe. Quando não vem da genética dos pais usamos o termo “Retinoblastoma esporádico”. Já em 5% dos casos sem histórico familial, a mutação pode ter sido herdada de pai ou mãe mesmo que estes nunca tenham manifestado o Retinoblastoma, como veremos em seguida.

Dos 90% dos casos nos quais não há histórico familiar nas gerações anteriores, em 60% só um olho é afetado, o que pode geral uma falsa impressão de que a hereditariedade não está envolvida e que o risco de transmissão para próximas gerações seria baixo. Porem algumas crianças que são inicialmente diagnosticadas com retinoblastoma unilateral desenvolvem posteriormente um tumor no outro olho, evidenciando por si só a hereditariedade. E mesmo que a alteração não tenha sido herdada, ela pode ser passada para próximas gerações se estiver presente nas linhagens germinativas dos afetados. Por outro lado, casos como o de Lua, aonde o Retinoblastoma foi bilateral, representam 30% das pessoas afetadas que não tem mais ninguem na familia com a condição, mas já tem Retinoblastoma nos dois olhos no momento do diagnóstico, o que por si só implica quase sempre em risco de transmissão para próximas gerações, quando esta criança for um adulto. Para fins de Aconselhamento Genético é fundamental e útil a investigação de hereditariedade, tanto nos casos aonde ela é óbvia, quanto nos casos aonde não é obvio. Esta pesquisa de hereditariedade deve ser realizada sempre que possível através de testes genéticos. A descoberta de uma mutação em RB1 é muito util para identificar se existem parentes (pais, irmãos, tios, filhos) em risco. Se a mutação na família já tiver sido claramente identificada no DNA da pessoa afetada, as pessoas da familia que testam negativo para esta mutação não precisam ficar realizando acompanhamento médico pelo resto da vida. Já a criança que tem mutação em RB1 precisa fazer exames oftalmológicos com anestesia a cada quatro semanas até os seis meses de idade e com menor frequência para sempre, para investigar o surgimento de outros tumores. Aquelas com Retinoblastoma unilateral porem sem histórico familiar, se o teste genético for negativo, podem fazer estas avaliações sem anestesia e com menos frequência. Pessoas com Retinoblastoma hereditário também apresentam risco aumentado de desenvolver tumores não oculares, e por isto médicos e pais devem estar atentos a queixas de dor óssea, manchas na pele ou nódulos, devido ao risco de sarcomas ósseos, melanomas e leiomiosarcoma. Limitar a exposição a agentes que danificam o DNA (radiação, tabaco e luz UV) pode reduzir os riscos destes tipos de câncer em pessoas com Retinoblastoma hereditário. Pessoas que tem Retinoblastoma não-hereditário não precisam se preocupar com o risco de surgimento de outros Retinoblastomas ou de outros tipos de cancer relacionados ao Retinoblastoma.

 

ACONSELHAMENTO GENÉTICO PARA OS PAIS QUE TIVERAM UM FILHO COM RETINOBLASTOMA E PRETENDEM TER MAIS FILHOS

1)   Quando um dos pais também teve Retinoblastoma 

Se o Retinoblastoma do filho e do genitor foi bilateral, o risco dos pais que tiveram um filho com Retinoblastoma terem outro filho com Retinoblastoma bilateral é de 50% em cada futura gestação.  Se o Retinoblastoma do genitor e do filho foi unilateral, o risco de transmissão para cada futuro filhos é também 50%, mas a forma de apresentação do Retinoblastoma em futuros filhos afetados (unilateral ou bilateral, um tumor ou mais de um tumor por olho) é imprevisível.   

2)   Quando nenhum dos pais teve Retinoblastoma 

Apesar de que a princípio 90% dos pacientes são casos esporádicos, a história familiar de algumas pessoas diagnosticadas com Retinoblastoma hereditário pode parecer negativa devido à falha em reconhecer a condição em membros da família (por exemplo, quando um dos genitores apresenta um tumor benigno precursor do Retinoblastoma denominado Retinoma), poucas células com mutação (mosaicismo de baixa frequência) ou mutações que podem as vezes não se manifestar (“penetrância reduzida”). Portanto, não se pode confiar totalmente numa história familiar aparentemente negativa para eliminar hereditariedade, a menos que uma avaliação clínica apropriada e/ou testes genéticos tenham sido realizados nos pais da pessoa com Retinoblastoma. Deve-se primeiro realizar o teste genético no filho com Retinoblastoma, e identificada a mutação, testá-la em ambos os pais.

a)    Se a mutação previamente detectada no filho não for detectada no DNA das células do sangue dos pais; Uma pessoa pode ter Retinoblastoma hereditário (aqui no sentido do risco de passar a mutação para próximas gerações) como resultado de uma nova mutação causada por acidente genético na formação daquele óvulo ou daquele espermatozóide que a deu origem, sem ter vindo da genética de nenhum dos pais. Na prática 95% dos indivíduos com Retinoblastoma hereditário e sem história familiar de Retinoblastoma apresentam a condição como resultado deste acidente genético. E assim sendo, o risco de um casal aonde nenhum dos dois tem Retinoblastoma e sem histórico familial de Retinoblastoma, que tem um filho com Retinoblastoma bilateral, vir a ter outros filhos com Retinoblastoma é pequeno, menor do que 2%, sendo que este risco pode ser ainda estratificado dependendo do  número de tumores que o filho tem nos olhos e se são bilaterais ou unilaterais. Se o tumor do filho for bilateral o risco de ter um filho com Retinoblastoma em cada futura gestação é de 2%, se o filho tiver múltiplos tumores em um olho o risco é entre 2% e 1%, e se for um único tumor unilateral o risco para próximos filhos é de menor que 1%. Mas é importante ressaltar que estes riscos ainda são maiores do que o risco de um casal qualquer da população geral, pois existem estes raros casos aonde um genitor tem mutação só nas células germinativas (óvulos ou espermatozóides), o que chamamos de mosaicismo germinal. Se for possível com teste genético comprovar que a criança com Retinoblastoma tem a mutação somente em parte de suas células (mosaicismo somático na criança), então os pais podem ficar tranquilos no que se refere a outros filhos, visto que o risco passa a ser bem baixo, igual ao da população em geral.

b)   Se a mutação previamente detectada no filho for detectada no DNA das células do sangue de um dos pais; Em aproximadamente 5% das crianças com uma mutação em RB1, mesmo que seja o único indivíduo afetado na família, um dos pais também tem a mutação mesmo sem ter manifestado claramente o Retinoblastoma. Nestes raros casos esta mutação não se manifesta como Retinoblastoma no pai ou na mãe por estar presente só em algumas células do corpo (mosaicismo somático em um dos pais) incluindo a presença em alguns óvulos ou em alguns espermatozóides de um dos genitores (mosaicismo germinal). Mecanismos alternativos possíveis, porem menos compreendidos, para explicar o fato de pais não terem Retinoblastoma mas terem a mesma mutação que seus filhos afetados, no DNA das células do sangue, seriam a presença de certos tipos de mutação que pouco alteram a proteína RB1 e então podem sob certas circunstancias levar a consequências leves (variabilidade de expressão), ou sequer se manifestar clinicamente (penetrancia reduzida). Nestes casos o risco dos pais da criança com Retinoblastoma virem a ter outros filhos com Retinoblastoma é pequeno, empiricamente estimado em 5%.

 

ACONSELHAMENTO GENÉTICO PARA AQUELES QUE TIVERAM RETINOBLASTOMA QUANDO CRIANÇA, QUANDO FOREM TER FILHOS 

1)   Quando um dos pais da pessoa que teve Retinoblastoma quando criança, tambem teve Retinoblastoma

 a)    Quando tanto a pessoa que teve Retinoblastoma quando criança, quanto um de seus pais, tiveram Retinoblastoma bilateral; A pessoa que teve Retinoblastoma bilateral quando criança, filha de uma pessoa que também teve Retiboblastoma bilateral, pode no futuro vir a ter filhos com Retinoblastoma bilateral, porque o risco de passar para a próxima geração a mutação em RB1 que confere predisposição de desenvolvimento de Retinoblastoma será de 50% em cada futura gestação.

b)   Quando tanto a pessoa que teve Retinoblastoma quando criança, quanto um de seus pais, tiveram um único Retinoblastoma em um só olho; Neste caso o risco de transmissão para cada futuro filhos é também 50%, mas a forma de apresentação do Retinoblastoma em futuros filhos afetados (unilateral ou bilateral, um tumor ou mais de um tumor por olho) é imprevisível.   

 

2)   Quando nenhum dos pais da pessoa que teve Retinoblastoma bilateral quando criança, teve Retinoblastoma 

a)    Quando a pessoa que teve Retinoblastoma quando criança, teve Retinoblastoma bilateral;Neste caso, mesmo que não haja histórico familial para gerações anteriores, a pessoa que teve Retinoblastoma bilateral quando criança, pode no futuro vir a ter filhos com Retinoblastoma bilateral, porque o fato de ter ocorrido nos dois olhos implica a presença da mutação em todas as células do corpo, inclusive em 50% de suas células germinativas. Portanto, nestes casos o risco de passar para a próxima geração a mutação em RB1 que confere predisposição de desenvolvimento de Retinoblastoma será de 50% em cada futura gestação.  

b)   Quando a pessoa que teve Retinoblastoma quando criança, teve vários Retinoblastomas, mas em um único olho;

Mesmo que uma pessoa que teve Retinoblastoma quando criança passe a mutação que confere a predisposição ao Retinoblastoma para um filho, se não houver histórico familiar de Retinoblastoma em gerações anteriores a ela, o Retinoblastoma pode não se manifestar no filho, em especial quando o Retinoblastoma que a pessoa teve quando criança foi unilateral ou quando teve apenas um único foco de Retinoblastoma nos dois olhos. Neste caso, se não houver histórico familiar de retinoblastoma em gerações anteriores, e a pessoa que teve Retinoblastoma quando criança, teve vários Retinoblastomas mas em um único olho, o risco de cada futuro filho ter Retinoblastoma varia entre 6% e 50%.

c)    Quando a pessoa que teve Retinoblastoma quando criança, teve um único Retinoblastoma em um único olho;O risco de desenvolvimento de Retinoblastoma em cada filho de uma pessoa que teve Retinoblastoma quando criança com um único tumor unilateral e sem história familiar é de 6%, refletindo a possibilidade de que a pessoa que teve Retinoblastoma quando criança tenha mosaicismo somático (parte das células do corpo com mutação e parte sem). Se tem mosaicismo somático também pode ter como adulto uma mutação em poucos espermatozóides ou óvulos (“mosaicismo germinal”). Se teve só um único tumor em um único olho pode ter uma mutação que as vezes se manifesta como Retinoblastoma e as vezes não se manifesta (“penetrancia reduzida”). Nestes casos a realização do teste genético comparativo entre o DNA do tumor e o DNA das células do sangue da pessoa que teve Retinoblastoma quando era criança, pode ser neste momento a posteriori, quando ela já é adulta, muito informativo, reduzindo mais ainda estes riscos. Se as mutações no gene RB1 que foram detectadas no tecido tumoral da pessoa que teve Retinoblastoma quando criança não foram detectadas no DNA de seu próprio sangue, é uma forte evidencia deste tipo de mosaicismo somático e germinal. E nestes casos há uma chance empiricamente estimada de 1,2% de que a pessoa que teve Retinoblastoma quando criança, e seus pais não tiveram Retinoblastoma, tenha mosaicismo germinativo para uma das mutações identificadas no tecido tumoral. Nesta circunstancia específica, cada descendente desta pessoa que teve Retinoblastoma quando criança terá um risco de 0,6% de herdar uma mutação desta linhagem germinativa. O teste genético nos futuros filhos poderá verificar a presença ou não de uma das mutações identificadas no tumor do afetado. Como podemos observar, a hereditariedade do Retinoblastoma é complexa. Por outro lado, uma profunda compreensão da genética de cada pessoa com Retinoblastoma é fundamental para dar apoio a cuidados de saúde adequados a criança e seus familiares, em especial o rastreamento de Retinoblastomas adicionais na criança e outros tipos de câncer relacionados ao Retinoblastoma, determinação de riscos para outros membros da família eliminando procedimentos desnecessários ou alertando para a necessidade destes, assim como Aconselhamento Genético reprodutivo. Atualmente existem várias opções reprodutivas para minimizar estes riscos de herdar ou transmitir a mutação para próximas gerações. Pela somatória dos motivos acima expostos, alem do oftalmologista e do pediatra, é fundamental consultar um médico geneticista em todos os casos de Retinoblastoma.

 

Salmo Raskin

Médico especialista em Pediatra e Genética

CRM PR 11162

Presidente do Departamento Científico de Genética e do Grupo de Trabalho de Doenças Raras da Sociedade Brasileira de Pediatria

 

 

  • Referências bibliográficas
  • Skalet AH, Gombos DS, Gallie BL, Kim JW, Shields CL, Marr BP, Plon SE, Chévez-Barrios P. Screening Children at Risk for Retinoblastoma: Consensus Report from the American Association of Ophthalmic Oncologists and Pathologists. Ophthalmology. 2018 Mar;125(3):453-458. doi: 10.1016/j.ophtha.2017.09.001. PMID: 29056300.
  • Soliman SE, Racher H, Zhang C, MacDonald H, Gallie BL. Genetics and Molecular Diagnostics in Retinoblastoma– An Update. Asia Pac J Ophthalmol (Phila).2017 Mar-Apr;6(2):197-207. doi:10.22608/APO.201711. PMID: 28399338.
  • Lohmann DR, Gallie BL. Retinoblastoma. 2000 Jul 18 [Updated 2018 Nov 21]. In: Adam MP, Ardinger HH, Pagon RA, et al., editors.
  • GeneReviews® [Internet]. Seattle (WA): University of Washington, Seattle; 1993-2022. Disponível em https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK1452

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