7 de dezembro de 2023

TERAPIA GÊNICA PARA DOENÇA FALCIFORME POR CRISPR CHEGA NA PRÁTICA MÉDICA

NESTA SEXTA FEIRA 8/12/2023 FDA DEVE APROVAR PELA PRIMEIRA VEZ A TERAPIA GÊNICA ATRAVÉS DA REVOLUCIONÁRIA TÉCNICA DE CRISPR, PARA TRATAMENTO DE MILHARES DE PESSOAS COM A DOENÇA GENÉTICA ANEMIA FALCIFORME

 

  • A DOENÇA FALCIFORME

A hemoglobina é uma das proteínas mais importantes do organismo, pois dentro das hemácias, tem como uma das funções carregar o o oxigênio dos pulmões para os tecidos. A doença falciforme (DF) é consequência de uma alteração no formato das hemácias. O formato se altera por uma mutação hereditária no gene da subunidade beta da hemoglobina. Normalmente a hemacia tem um formato esférico, de disco biconcavo. A mutação faz com que a hemoglobina se torne insolúvel, fazendo com que a hemacia adquira um formato de foice (falciforme), deixando de funcionar adequadamente. Essas hemácias deformadas e em forma de foice se agregam causando obstrução ao fluxo sanguíneo (vaso-oclusão), com consequente isquemia tecidual e danos a órgãos (cérebro, coração, fígado, rins, pele, olhos, esqueleto e pulmões) e destruição das hemácias. Esta destruição (hemólise) leva à anemia crónica, que requer repetidas transfusões sanguíneas, o que pode resultar em complicações, como sobrecarga de ferro, aloimunização e infecção, o que também contribui para a morbilidade da doença falciforme, e má qualidade de vida, além de contribuir para a mortalidade.DF é definida como grave quando ocorrem 2 ou mais episódios de crises vaso-oclusivas por ano em cada um dos 2 anos anteriores. As crises vaso-oclusivas são a marca registrada da manifestação clínica da DF, frequentemente são eventos dolorosos graves, mas também podem se apresentar como  síndrome torácica aguda, ou infarto do baço que deixa as crianças particularmente suscetíveis a sepse avassaladora. A longo prazo, a DF pode levar a complicações neurológicas, pulmonares, cardíacas e renais potencialmente fatais e uma expectativa de vida reduzida. O tratamento disponível para Doença Falciforme inclui medicamentos como a hidroxiureia, L-glutamina, voxelotor, crizanlizumab, bem como transplante de medula alogênico aparentado mieloablativo de células-tronco hematopoiéticas (sangue de cordão umbilical, sangue periférico ou medula óssea). Transplante alogênico é aquele no qual as células precursoras da medula provêm de outro indivíduo (doador), de acordo com o nível de compatibilidade do material sanguíneo. A primeira opção é sempre pela medula de um irmão, depois de um doador familiar com marcadores do sistema de imunocompatibilidade HLA idênticos. O transplante de medula pode ser curativo, mas acarreta riscos, e a disponibilidade é limitada a uma minoria que consegue ter doadores de medula com compatibilidade adequada. Nos EUA estima-se que cerca de 18% dos pacientes com DF conseguem ter um doador adequado compatível com o HLA. Em 1994, um estudo norte-americano multicêntrico denominado de “Cooperative Study of Sickle Cell Disease (CSSCD)” observou que a sobrevida mediana de homens e mulheres com DF era de 42 e 48 anos.

 

  • A DOENÇA FALCIFORME NO BRASIL

As hemoglobinopatias decorrentes dos defeitos na estrutura da Hemoglobina são mais frequentes em povos africanos. Apesar dessa predileção étnica, a DF está presente em todos os continentes, como consequência das migrações populacionais. No Brasil, que reconhecidamente apresenta uma das populações de maior heterogeneidade genética do mundo, a maior prevalência da doença ocorre nas Regiões Norte e Nordeste. Estima-se o nascimento de uma criança com anemia falciforme para cada mil recém-nascidos vivos, e o reconhecimento de que a DF é uma doença prevalente no Brasil foi determinante na instituição da Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme (PNAIPDF) do Ministério da Saúde, em 16 de agosto de 2005. Trata-se de uma das doenças genéticas mais comuns em todo o mundo, principalmente em países com histórico de diáspora africana. Uma vez que se trata de uma doença genética de origem africana, a DF é mais comum em pretos e pardos, sendo os óbitos com maior concentração também entre esses sujeitos. Dados do Ministério da Saúde demonstram que entre 2014 e 2020 ocorreram um total de 3208 óbitos por DF no Brasil, sendo 2540 entre pretos e pardos. A maior parte dos óbitos de pacientes com DF no Brasil ocorreu na segunda década de vida (20 aos 29 anos).

O diagnóstico da DF é feito, principalmente, no Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN) – “teste do pezinho”. No Brasil, entre os anos de 2014 e 2020 a cobertura média do PNTN foi de 82,37%. A incidência de DF no período foi de um caso a cada 2.500 nascidos vivos (cerca de 1.100 casos/ano). Estima-se que há entre 60 mil e 100 mil pessoas com a doença no País, e, portanto, podemos estimar que cerca de 12 a 20 mil pessoas estariam elegíveis para receber o Exa-cel, se e quando ele estiver disponível no Brasil. A distribuição da DF no Brasil é bastante heterogênea, sendo a Bahia a unidade federada com maior incidência (9,46/100.000 pessoas)(Silva-Pinto AC e cols. The Neonatal Screening Program in Brazil, Focus on Sickle Cell Disease (SCD). Int J Neonatal Screen. 2019 Jan 26;5(1):11); Ministério da Saúde – Secretaria de Vigilancia em Saúde e Ambiente – Boletim Epidemiológico NÚMERO ESPECIAL – 10 de Outubro de 2023, disponível em file:///C:/Users/User/AppData/Local/Microsoft/Windows/INetCache/Content.Outlook/NLVLYQBK/Anexo%20sem%20t%C3%ADtulo%2000027.pdf).

Na Atenção Básica, dá-se o diagnóstico precoce por meio da triagem neonatal (“teste do pezinho”), que inclui a triagem para anemia falciforme desde 2001, quando foi criado o Programa Nacional de Triagem Neonatal. Crianças com triagem positiva são vinculadas a unidade básica de saúde e encaminha-se para o Serviço de Atenção Especializada, conforme estabelecido no Programa Nacional de Triagem Neonatal e na Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme. Apara as crianças e adultos que não tiveram acesso à triagem neonatal, o SUS oferta o exame de eletroforese de hemoglobina na Atenção Básica e na rotina do pré-natal (Rede Cegonha), e a atenção a todos os indivíduos com diagnóstico confirmado é dada, independentemente da idade do paciente no momento do diagnóstico.

 

  • A DOENÇA FALCIFORME NOS EUA

Os afro-americanos representam 13,6% da população dos EUA, o que representa cerca de 45 milhões pessoas. A DF é a doença genética mais comum, e afeta 1 em cada 500 afro-americanos, e, portanto, etima-se que 100.000 pessoas compõem a população de pacientes norte-americanos com DF. Pacientes com doença falciforme grave, definida por crises vaso-oclusivas recorrentes, são mais raros, estimados em 20.000 pessoas nos EUA. Nos EUA, aproximadamente 90% das pessoas com DF são de ascendência africana.

 

  • CRISPR, A TÉCNICA
  • Yoshizumi Ishino e sua equipe, em 1987, detectaram acidentalmente uma série incomum de sequências repetidas no genoma da Escherichia coli;
  • Estas sequências são compostas por repetições de 21 a 47-bases nitrogenadas, intercalaladas por espaçadores (spacers) do mesmo tamanho;
  • Mojica e cols, em 1995 deram o nome de CRISPR, Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats (CRISPR), ou seja, Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas;
  • Bolotin e cols. em 2005 comprovaram que CRISP é um aparato de imunidade das bactérias;
  • Em 2012, foi publicado um artigo seminal aplicando CRISPR-Cas9 como uma ferramenta de edição de genes.
  • Em 2020 Jennifer Doudna e Emmanuele Charpentier ganharam o prêmio Nobel de Química
  • CRISPR/Cas9 edita genes cortando com precisão o DNA e, em seguida, aproveitando os processos naturais de reparo do DNA para modificar o gene da maneira desejada.
  • O sistema possui dois componentes principais: a enzima Cas9 e um RNA guia.
  • Cas9: uma endonuclease associada a CRISPR (Cas), ou enzima, que atua como “tesoura molecular” para cortar DNA em um local especificado por um RNA guia
  • RNA guia (gRNA): um tipo de molécula de ácido ribonucleico (RNA) que se liga ao Cas9 e especifica, com base na sequência do gRNA, o local em que Cas9 cortará o DNA
  • Vídeo mostrando como CRISPR funciona https://crisprtx.com/gene-editing

 

 

  • A PESQUISA UTILIZANDO CRISPR PARA TRATAR DOENÇA FALCIFORME
  • A Hemoglobina fetal (HbF) consiste em duas cadeias de globina alfa e duas globinas gama. A hemoglobina adulta (HbA) consiste em duas cadeias de globina alfa e duas betas. Durante o desenvolvimento fetal tardio, a expressão da gama globina é reprimida, levando à transição da HbF para a hemoglobina adulta após o nascimento.
  • BCL11A é um gene que codifica para um fator de transcrição que reprime a expressão de gama globina em células eritróides, sendo, portanto, um dos principais atores desta transformação da hemoglobina fetal para a hemoglobina adulta.
  • Exagamglogene autotemcel (Exa-cel) , como é chamada a terapia gênica via CRISPR para DF, tem como alvo a clivagem mediada por Cas9 para o sítio de ligação de GATA1 na região intensificadora específica da linhagem eritróide do gene BCL11A.
  • CRISPR introduz mutações nesta região do genoma das células tronco hematopoiéticas, e interrompe a ligação do GATA1 após a diferenciação eritróide, diminuindo assim a expressão de BCL11A especificamente nas células eritróides;
  • Esta redução na expressão de BCL11A alivia o bloqueio da expressão de gama globina mediado por BCL11A.
  • O aumento da expressão da gama globina resulta em aumento da produção de Hemoglobina fetal. A regulação positiva da Hemoglobina fetal diminui os sintomas da DF.

O estudo clínico que está sendo avaliado pelo FDA foi realizado com a aplicação de dose única de Exa-cel em indivíduos de 12 a 35 anos com doença falciforme grave com eventos vaso-oclusivos recorrentes. Os indivíduos tratados com Exa-cel expressaram aumento de Hemoglobina F em ​​aproximadamente 3 meses após a infusão. Dos 30 indivíduos elegíveis para análise de eficácia tratados com Exa-cel, 29 alcançaram o objetivo primário de eficácia de isenção de eventos vaso-oclusivos por 12 meses a partir da infusão de exa-cel e 28/29 indivíduos permaneceram livres de eventos vaso-oclusivos por um período médio de 22,3 meses. Antes do tratamento, eles tinham uma média de quarto eventos vaso-oclusivos por ano. 30 dos 30 pacientes não necessitaram internação gratuita por 12 meses consecutivos, sendo que  que em média esses pacientes tiveram 2,7 hospitalizações por ano e passaram 17,1 dias por ano no hospital durante os dois anos anteriores.

 

  • CRISPR PARA TRATAR ANEMIA FALCIFORME: COMO SERÁ FEITO

Exa-cel é uma terapia genética baseada em um produto composto por células CD34+ autólogas editadas através de CRISPR/Cas9 no gene BCL11A no cromossomo 2. O medicamento exa-cel é produzido pela edição por CRISPR/Cas9 do genoma de células tronco hematopoiéticas. O procedimento é realizado em quatro etapas; mobilização, aférese, mieloablação e procedimentos de transplante subsequentes.  As células-tronco hematopoiéticas, também denominadas células progenitoras ou precursoras, podem ser obtidas a partir de três fontes: da medula óssea, do sangue periférico ou do sangue do cordão umbilical e placentário. No transplante autólogo de células-tronco hematopoiéticas a medula óssea do paciente é substituída por células tronco sadias do próprio paciente. Antes do transplante, células tronco hematopoiéticas do paciente são coletadas de seu sangue periférico por Aférese após mobilização com plerixafor. A Aférese é um método em que a pessoa, no caso o paciente com DF, faz uso de uma medicação por cinco dias, com o objetivo de aumentar a produção de células-tronco circulantes no seu sangue. Durante o uso desta substancia, pode ocorrer dor óssea e musculares, além de cefaleia. Após esse período, a captação é realizada por meio de uma máquina de aférese, que colhe o sangue através de duas veias do o paciente com DF, uma em cada braço, ou uma veia profunda, separa as células-tronco e devolve os componentes do sangue que não são necessários para o paciente. Não há necessidade de internação e anestesia. Poderão ocorrer náuseas, dormências, sensação de frio e hematoma no local do acesso. Os componentes CRISPR-Cas9 são então introduzidos nas Células-tronco CD34+ por eletroporação. Eletroporação consiste na aplicação de pulsos elétricos curtos de alta tensão que aumentam o potencial de transporte da membrana, promovendo uma formação transitória de poros aquosos, permitindo que macromoléculas migrem através desses poros e as células editadas com o gene BCL11A mutado são criopreservadas e testadas para liberação para aplicação no paciente. Um condicionamento mieloablativo é necessário antes da perfusão de Exa-cel. A mieloablação é uma etapa necessária antes da infusão de exa-cel, a fim de esgotar as células tronco ematopoiéticas endógenas da medula óssea do paciente e permitir o repovoamento hematopoiético com edição genética. Bussulfan é usado como agente único para condicionamento mieloablativo da medula óssea. No condicionamento mieloablativo a medula óssea é destruída, e isso ajuda a acabar com as células que dão origem as hemácias falciformes. Na próxima etapa o paciente recebe de volta suas próprias células-tronco hematopoiéticas, que aos poucos se instalam dentro da medula óssea. Espera-se que depois de um determinado período de tempo, variável de paciente para paciente, as células geneticamente corrigidas comecem a se multiplicar no paciente produzindo novas células do sangue com Hemoglobina fetal. Quando administrado ao doente após a administração de um regime de condicionamento mieloablativo, as células geneticamente modificadas formam um enxerto e são capazes de efetuar a repopulação do compartimento hematopoiético.

Exa-cel é uma terapia de aplicação única, com produto autólogo que não requer doador alogênico. Porque é uma terapia autóloga, não há doença do enxerto contra o hospedeiro, que é a principal complicação após um transplante alogênico de células hematopoéticas e ocorre quando as células T do doador respondem aos antígenos histo-incompatíveis nos tecidos do hospedeiro. Como Exa-cel tambem não há riscos imunológicos de rejeição do enxerto associada ao transplante alogênico. Finalmente, terapias imunossupressoras pós-transplante não são necessárias.

 

  • OBSTÁCULOS PARA QUE A TERAPIA PARA DOENÇA FALCIFORME VIA CRISPR SE TORNE ROTINEIRA
  • Encontrar bons vetores para transportar o aparato CRISPR-Cas9.
  • Evitar e se certificar de que não estão ocorrendo edições em locais errados do genoma;

A DF afeta predominantemente pessoas de ascendência africana, e os examinadores da FDA estão preocupados com o fato de a diversidade genética nesta população não ter sido capturada nos genomas que as empresas pesquisaram (661 indivíduos do sudeste dos EUA). Portanto, poderia haver sequências genéticas neste grupo que poderiam ser alvo do Cas9, mas que foram perdidas na análise. “Para estudos de “edição fora do alvo”“ os pesquisadores utilizaram células tronco de um número pequeno de indivíduos saudáveis doadores (3), β-talassemia dependente de transfusão (TDT) (3) e doadores com DF (3).

  • Além disso, as células de doadores saudáveis podem não capturar adequadamente a edição fora do alvo que poderia ocorrer em células que contem  mutação que leva a DF.
  • Alto Custo – O custo provável da terapia pode chegar a US$ 2 milhões por paciente.
  • Complexidade do tratamento – O tratamento é complexo, exigindo transplante de medula óssea e internação prolongada.
  • Questões éticas

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